À GUISA DE GUIZOS
- Betânia,
feche a janela, por favor.
Apesar
do “por favor” no final da frase, as frases traziam em si o peso de uma ordem
dada com muito rancor. A sala, apesar de fechadas as janelas, se enchia com os
gritos alegres dos foliões, as batidas dos bumbos e as tonitruantes melodias
despejadas pelos trompetes, trombones, saxofones e a tuba da troça que passava
na rua.
-
Diabos. A gente não pode nem assistir à tevê por causa desses maloqueiros. -
Resmungou enquanto aumentava o volume do aparelho com o controle remoto.
-
É carnaval, seu Jonas. - Betânia tentava
contemporizar a raiva de seu idoso patrão.
-
Que carnaval coisa nenhuma. Esse pessoal não tem
é respeito pelo sossego dos outros, isto sim.
Antes que o velho começasse a desfiar o seu
rosário de imprecações contra o carnaval e suas barulhentas manifestações,
Betânia alegou serviços na cozinha e saiu da sala, que já ficava quente com a
falta de circulação de ar por causa das janelas fechadas. Sozinho na sala
quente e barulhenta, Jonas levantou-se e, sem desligar a tevê, dirigiu-se ao
seu quarto que, como ficava nos fundos da casa, era mais silencioso.
Na
cozinha Betânia comentava a ojeriza que o patrão sentia pelo carnaval com
outros criados e alguns moradores de casas vizinhas que passaram para conversar
com a fiel secretária do lar de seu Jonas.
-
Mas este seu Jonas é osso duro de roer, não é
Betânia?
-
Você não conhece da missa um terço Gilmar.
Gilmar era um mulato novo. Tinha uns 23
anos. Talvez 25. Cuidava dos afazeres de banco e comércio do velho Jonas.
Trabalhava há apenas 10 meses, mas já conhecia bem algumas manias e
idiossincrasias do patrão. Ele, que lidava com as contas, já testemunhara
algumas ocasiões nas quais o patrão preferia perder dinheiro a fazer o negócio
do jeito sugerido e que lhe fosse mais vantajoso.
-
Daqui a pouco estará dormindo. Parece um menino
mimado.
Betânia
já conhecia as manhas e manias de Jonas. Já trabalhava para ele há 25 anos e já
o conhecia antes disso, pois sua mãe era cozinheira da família. Ela frequentava
a casa desde menina, acompanhando a mãe e quando já estava mocinha, com seus 13
anos, começou a ajudar oficialmente a casa, recebendo salário. Jonas tinha nela
confiança e ela sabia bem corresponder a ele. Via, ouvia, sabia de tudo e se
calava. Tamanha confiança gerava conversas à boca miúda entre os frequentadores
da casa. Os mais afoitos asseguravam que Betânia era o resultado de um caso que
Jonas mantivera com a cozinheira. Mas como a boca do povo tem mais línguas do
que dentes, Betânia, que sabia dos bochichos, nunca dera atenção àquilo. Às
vezes achava até bom que o povo pensasse assim. Tinham mais respeito. Mas ela
sabia que a história era bem diferente.
Jonas ligara o condicionador de ar de seu
quarto e se deitara em sua cama. Baixara as cortinas das janelas escurecendo o
ambiente e tornando-o mais silencioso do barulho do carnaval. Deitou-se e,
extático, no meio da cama, a olhar o teto, adormeceu.
-
Vamos, Jonas, vamos logo!
-
Calma, esta fantasia é complicada.
-
Deixe-me ajudá-lo... Nossa! Quantos guizos!
-
São 250. Já imaginou o efeito?
-
Que loucura! Mas está uma beleza. Quem desenhou?
-
Eu mesmo. Inspirei-me em alguns trajos da
comédia grega.
-
Rapaz, você vai arrasar. Mas só se for logo.
Senão a gente fica aqui e ninguém vai nos ver. Tânia disse que iria estar com
Sandra nos esperando.
-
Eduardo, meu amigo, este ano, como diz a canção,
não vai ser igual àquele que passou... Com Sandra na jogada, vou fazer a festa.
Vamos embora que já estou pronto.
Os dois rapazes saíram correndo do quarto
onde Jonas se vestia. Ao passar pela sala, Jonas mal se despediu dos pais, e
menos ainda ouviu a recomendação da mãe, que ficou perdida entre as paredes do
corredor. Ela ainda ouviu as palavras de Eduardo ecoando pela casa:
-
Tchau, dona Marta. Feliz carnaval.
Os acordes da banda já iam dobrando a
esquina da praça lá embaixo quando Gilmar entrou na sala e viu a televisão
ligada sem ninguém assistindo. Voltou à cozinha e perguntou a Betânia se podia
desligar o aparelho.
-
Primeiro vá baixando devagar, Gilmar. Depois
desligue. À uma hora dessas, seu Jonas já deve estar no terceiro sono.
-
Olha lá, a Tânia, Jonas.
-
Tânia, Tânia - gritaram juntos os rapazes.
-
Jonas, Eduardo. Oi, que bom ver vocês. Tudo bem?
-
Cadê Sandra?
-
Foi comprar uma bebida. Puxa, Jonas, que
fantasia bárbara!
-
Obrigado. Se ela é legal assim parada, imagina
quando eu começo a pular.
Dizendo
isso, Jonas começou a dançar ao som da música que tocava agitando os seus 250
guizos. Parecia uma bateria andarilha.
-
Olha, lá vem Sandra.
Betânia acabava de preparar o jantar e
agora se ocupava em arrumar a mesa. Mesmo morando sozinho, o costume era de
servir o jantar com certo cerimonial. Mas fazia parte do cerimonial nunca
acordar o velho Jonas se ele estivesse dormindo na hora do almoço ou do jantar.
Quando ele acordasse, mais tarde, não iria incomodar ninguém para servi-lo. Ele
mesmo faria o serviço.
Pelo
que ela conhecia do patrão, deitando e dormindo àquela hora talvez levantasse
só às 11 da noite para jantar. Sem cerimônia, chamou Gaspar e Gilmar para
jantarem.
Gaspar
era o motorista e pai de Gilmar. Já cinquentão, disputava os favores de Betânia
com o próprio filho, mas ela, esperta e decidida, se mantinha calada e séria e
não facilitava para nenhum dos dois. Mas também não cortava. Aceitava de bom
grado as insinuações, porém repreendia, às vezes, alguma saliência,
principalmente de Gaspar, que era casado.
-
Puxa, Sandra está fria comigo.
-
Impressão, Jonas.
-
Impressão nada, Eduardo. Presta atenção. Ela nem
me olhou direito.
-
Mas em compensação, ouviu muito bem. Cada
movimento seu chama mais atenção que a orquestra... Tlim tlim tlim tlim...
-
Eu estou falando sério, Eduardo.
-
Desencana, meu amigo. Vamos molhar a garganta...
Eduardo não deu muita trela para as preocupações de Jonas e saiu
pulando
ao som da música na companhia de Tânia. Sandra brincava com eles, mas Jonas
estava certo no seu depoimento. Ela não parecia estar com o pensamento longe
dali. Ela realmente estava esperando a chegada de alguém. Enquanto podia, Jonas
procurava se aproximar da garota, sem obter muito sucesso.
Para
piorar o quadro, Sandra parecia estar procurando uma pessoa no meio da
multidão, enquanto pulava na folia.
- Será que “seu” Jonas vem jantar hoje,
Betânia?
-
Ele sempre vem, Gilmar. Cedo ou tarde, ele
aparece.
-
E todo carnaval é assim? Nem ele sai daqui, nem
deixa ninguém sair?
-
É, Gilmar! Todo ano, há pelo menos 40 anos.
-
40 anos?
-
É isso mesmo, 40 anos. Algum problema? Deixei de
pagar os dias de trabalho de alguém?
A
entrada do velho Jonas na cozinha onde os criados jantavam, à súbita, deixou
todos perplexos e constrangidos. Levantaram-se e pediram desculpas. O velho
rabugiu. Não tinha mandado ninguém parar de comer, apenas entrara na cozinha.
Mandou que sentassem novamente, puxou uma cadeira para si e juntou-se à mesa.
-
Betânia, por favor, traga-me um copo e aquela
garrafa azul do armário da sala.
Incontinente,
a criada levantou-se e rapidamente satisfez o pedido do patrão.
Jonas
derramou o líquido no copo até a metade e começou a beber lentamente, e como
quem está pensando alto, falou para os criados:
-
Quarenta anos se passaram. Acho que perdi muito
de minha vida por causa desta tristeza enorme que carrego. Sabe que eu estava
dormindo agora e sonhei com o carnaval que vivi 40 anos atrás? Eu estava
orgulhoso de minha fantasia.
-
Era bonita? - Arriscou Betânia para interagir um
pouco.
-
Se era bonita? Acho que sim. Pelo menos era
original. Mas, apesar disso, de nada adiantou eu vesti-la. Quem eu queria que
me visse não me viu. Voltei para casa, guardei a fantasia e nunca mais a vi.
-
Ainda está guardada, senhor?
-
Está, Gaspar. No mesmo local onde eu a coloquei
naquele dia.
-
Aqui, nesta casa, “seu” Jonas? Eu nunca vi, nem
nunca soube disso.
-
É, Betânia. Tem muitas coisas que você não sabe.
Eu sempre fui muito chato mesmo.
Dizendo
isso, sorveu o último gole de bebida do copo.
-
Por favor, me acompanhem neste último trago. É
só para fazer um brinde. Ao fim de minha reclusão.
Colocou
bebida nos copos dos seus criados, que, surpresos e alegres, brindaram e
beberam.
-
O que o senhor quer dizer com o fim de sua
reclusão, “seu” Jonas?
-
A liberdade, Betânia. Para mim e para vocês.
Vamos dar uma volta por aí. Vamos às ruas. Nós quatro. Vou para o meu quarto me
arrumar. Em vinte minutos nós sairemos, aprontem-se.
Puxou
a cadeira e saiu em direção ao quarto. Os três entreolharam-se e ficaram em
silêncio por algum tempo, se questionando o que fazer.
-
Depois conversaremos sobre isso - disse Gaspar.
É melhor fazermos o que ele disse. Vamos logo que já estamos perdendo tempo.
Passados
os vinte minutos determinados, os três foram para a sala esperar o redimido
Jonas. Meia hora, e nada. Quarenta minutos eram nada frente aos quarenta anos,
mas ante a total falta de sinais da saída do velho do quarto, Betânia foi até
lá e bateu na porta do quarto. Não foi respondida. Repetiu o chamado. Ouvindo o
insistente chamado, Gaspar e Gilmar foram até a porta encontrar a criada e
depois de mais uma chamada, sem resposta, resolveram abrir e entrar.
Ao
entrarem no recinto frio e escuro, perceberam o Jonas vestido em sua fantasia
com 250 guizos. Silenciosos e inertes como o corpo do velho deitado na cama. No
rosto, um sorriso poucas vezes visto. Na mão um bilhete quase caindo ao chão.
“Nesta
armadura colorida e sonora, entrei uma vez e saí da vida. Se nela estiver
novamente, toma-a como uma mortalha. Se nela morri, com ela devo ser
enterrado”. Jonas
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