DE VEZ EM QUANDO
Pedi duzentos gramas de presunto. O
balconista retirou do balcão um pacote de presunto light. Inconscientemente,
fiz uma careta e ele percebeu. Perguntou-me se
preferia o outro e se eu queria engordar. Ri e disse que podia ser
daquele mesmo.
Foi quando eu ouvi uma voz dizendo: “Coloque trezentos gramas
para mim, por favor”.
Enquanto o balconista perguntava se era
daquele presunto mesmo e obtinha uma resposta positiva, eu o olhei e senti que
naquele momento parei para pensar na vida. Na minha vida.
Acho que, de vez em quando, nós nos
damos conta de que estamos vivos. Só de vez em quando. No mais das vezes,
estamos com o piloto automático ligado e nem sabemos o que se passa nas nossas
vidas.
Todos
os dias eu ia à padaria e, geralmente, meu marido me acompanhava. Como naquele
dia, ou melhor, naquela noite. Já eram quase oito da noite, e nós voltávamos de
mais um dia de trabalho. Passamos na padaria e nem comprei pão. Lá em casa já
tinha. Quero dizer, ainda tinha.
Precisávamos de leite, queijo e presunto. Duzentos gramas de presunto. Meu
marido ficou na calçada conversando com o dono da padaria, que se preparava
para fechá-la. Peguei um pote de coalhada antes de pedir o presunto e,
literalmente, carregava tudo como se carrega um bebê. Nos braços. Recebi o
presunto e, quando fui sair do balcão onde estava sendo atendida, a coalhada
caiu no chão. Um estrago. Meus pés ficaram cheios de coalhada. O chão lambuzado
com aquela mancha branca e viscosa. Até minha calça ficou suja. Aquele momento
foi cruciante. Fiquei morta de vergonha. Desastrada e suja. Ele me olhou, e eu
percebi o seu interesse em me ajudar. Pedi um pano, um guardanapo ao
balconista. Eu parada com os braços cheios de leite, queijo e duzentos gramas
de presunto. E a coalhada derramada no chão e nos meus pés. Ele estava aflito,
sei que estava. Procurou como me ajudar, mas não conseguiu achar nada para que
pudesse me socorrer. Fiquei morta de vergonha, de verdade. Agora mais forte
ainda, pois ele queria me ajudar e não conseguia. Antes ele não tivesse me
visto. Nem eu a ele. Um dos balconistas me deu alguns guardanapos. Meu marido,
lá fora, nem sabia do ocorrido. Nem me viu. Abaixei-me para limpar os pés.
Abraçava o leite, o queijo e o presunto de uma forma tão intensa e tão
carinhosa que era eu que devia estar ali dentro dos braços: protegida e
escondida. Olhando para o chão e para os meus pés, comecei a limpá-los. Senti a
vergonha sumir e ser substituída por um desejo. Ele ali, em pé, esperando seus
trezentos gramas de presunto, acompanhava o meu ritual com discrição. Ele me
olhava, e eu fiquei desejosa de ter os meus pés lambidos por ele. Devia ter uma
língua gostosa. Sinto que enrubesci. Não de vergonha, desta vez não. Era desejo
mesmo; tesão. Ele carregava nas mãos um pote de coalhada também. Ele gostava.
Será que ele tomaria coalhada servida nos meus pés. Um pote de coalhada
derramado no chão e minha vida sendo posta à prova. Eu estava ficando
louca? Ou estava vivendo? De vez em quando,
isso acontece com todo mundo. Mas para mim era novidade. Estava casada há um
bom tempo e eu amava meu marido. De verdade. Claro que isso não tem nada a ver
com a vida que a gente leva, mas o ineditismo da situação que eu estava vivendo
ali, com a coalhada derramada no meio da padaria, me fez parar para pensar.
Será que ele tinha vontade de lamber meus pés? Nunca pensei em pedir que meu
marido o fizesse. Ele nunca tomou a iniciativa. Nem de vez em quando. E lá
estava eu de cócoras, abraçada com o leite, o queijo e o presunto, limpando meus
pés sujos de coalhada, esperando que ele se aproximasse e me ajudasse. Será que
ele sabia que eu não estava sozinha? Na vida,
claro, porque apesar de meu marido estar ali, a cinco metros de mim na
porta da padaria, eu me sentia a mais solitária e desapegada criatura do mundo.
Minha vida naquele momento, se resumia da um litro de leite, um pacote de
queijo, duzentos gramas de presunto e um pote de coalhada estourado nos pés.
Era o externo. Isso era o que as pessoas viam. Era o que ele via. O que ninguém
via era o que existia dentro de mim. O desejo de ser ajudada. De que ele me
ajudasse e me limpasse, lambesse meus pés. Só os pés? Estava ficando louca
mesmo. Ele está saindo, se dirigindo para o caixa. Eu ainda luto com os
guardanapos, os pacotes nos meus braços, e com meus pés sujos. Peguei outro
pote de coalhada, igual ao que havia caído no chão. Passei pelo caixa e
encontrei-me com meu marido. Não falei do acidente. Ele não perguntou.
Demos
as mãos e começamos a andar em direção à nossa casa. Ele entrou no carro e
passou por nós sem olhar para trás. Não olhei também. Mas pensei, juro que pensei.
Aos poucos, na caminhada, minha vida
voltou ao ritmo normal. O piloto automático estava ligado novamente, mas meus
pés reclamavam por outros caminhos. Estavam sujos de coalhada. Minha vida
estava coalhada, dura e viscosa. Nem era iogurte. Sem corantes, sem
aromatizantes, sem flavorizantes era uma coalhada. Ele se foi e eu fiquei.
Pensava comigo: “Será que ele realmente desejou me ajudar?” A cada passo dado,
os pés se ressentiam da sujeira e
escorregavam dentro da sandália. Será que ele lamberia meus pés? Só os pés?
De vez em quando eu me recordo daquela
noite na padaria.
De vez em quando eu compro coalhada e
derramo nos meus pés.
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