quarta-feira, 6 de agosto de 2014

O anjo

O ANJO

            O tiro tinha passado tão perto que o calor queimou a pele do pescoço. Era o chamado “raspão”. Por preciosos milímetros, ele escapara de fazer parte das estatísticas da polícia.
            Ainda disparou duas vezes com seu revólver contra os homens da lei antes de desaparecer, correndo, no meio daquelas ruelas e becos escuros.
            Ao chegar em casa, fechou a porta com violência e, tão rapidamente quanto entrou, jogou-se na cama ofegante. As luzes permaneceram apagadas; as janelas fechadas.
            Esticou o braço e ligou o ventilador. Colocou o revólver debaixo da mesinha que apoiava o ventilador.
            Estava atento aos ruídos. Sirenes da polícia cortavam a noite. Às vezes, lá longe. Outras se aproximavam trazendo o medo.
            Uma hora depois, o silêncio da noite já não era mais interrompido pelas ações policiais. Desta vez, escapara. Mais uma vez.
- Preciso acabar com isso. Talvez não tenha tanta sorte da próxima vez. - Resmungou para si mesmo.
            - Não deve haver uma próxima vez, Valdo.
            - Quem está aí?  - Gritou assustado.
            Valdo levantou-se tão atabalhoadamente por causa do susto que derrubou o ventilador no chão. Procurou o revólver tentando identificar alguém no escuro do quarto.
            - Não pegue a arma. Não vim aqui para brincar de bang-bang.
            - Quem é você? O que quer aqui? - Em pé, tentava acender a lâmpada.
            - Não adianta acender a luz, Valdo. Acalme-se e ouça.
            A voz continuava grave e profunda, porém calma e suave.
            - Você não conseguirá me ver - continuou a voz no escuro - você somente me ouvirá. Eu sou seu anjo da guarda.
            - Quer me fazer de idiota? Apareça antes que eu me irrite mais ainda?
            - E você vai fazer o que se ficar mais irritado? Vais arrancar as penas das minhas asas. Ha, ha, ha.
            - Que brincadeira idiota é essa? Onde está você? Quem é você? Como entrou aqui?
            - Já disse. Sou seu anjo da guarda. Eu estou aqui. Sempre estou ao seu lado. Entrei com você.
            - Muito bem, meu anjo da guarda, diga então o que quer de mim e depois, por favor, dê o fora. Preciso descansar. Tive um dia cheio.
            - Eu sei disso, por isso quero conversar contigo. Mas, por favor, deixe o sarcasmo de lado. Ainda há pouco, você disse que devia largar essa vida. Vim para conversar sobre isso. É preciso que você abandone de vez essa vida. - A voz do anjo soou melíflua, como deve ser a voz dos anjos.
            - Vá para o inferno com essas bobagens - exasperou-se Valdo.
            - Para o inferno vai você desse jeito. A bala de hoje sentiu o cheiro do seu pescoço. Na próxima vez, entra no meio de sua testa. Aí sou eu quem vai rir e descansar um pouco. Não aguento mais ficar tirando você desses apuros. - O anjo mudou o tom de voz e falou com raiva.
            - Como você sabe da bala de hoje? Valdo assustou-se com a informação do anjo e baixou o tom da voz, assustado.
            - Como posso saber? Eu estava lá, seu idiota, protegendo sua carcaça inútil e me  ferrando todo. Eu não sou seu anjo da guarda? Se eu tivesse corpo feito de matéria, estaria parecendo uma peneira. Adivinha, graças a quem? - A irritação continuava na voz do anjo.
            Valdo, assustado com a conversa, perguntou timidamente se podia acender a luz. Mesmo que o seu interlocutor não pudesse ser visto, ele acreditava que a iluminação traria mais conforto àquela situação. 
            - Quer que todos saibam que você está em casa? Acho uma insensatez.
            - Bem, é que...
            - Quer me ver, não é? Já disse que não podes me ver. Quando muito, poderá ver umas sombras projetadas na parede, mas não creio que isso seja interessante no momento. O escuro e o silêncio são os nossos melhores companheiros. Cale-se e ouça o que tenho a dizer.
            Valdo ouviu a preleção do anjo. Este respondia às questões do bandido, que cada vez mais se convencia de ter que deixar aquela vida.
            - E os meus companheiros? Eles não vão aceitar esta saída. Vão me cobrar e, quem sabe, até me pressionar, daquele jeito, para que eu não saia do crime. Eles têm medo que eu os denuncie.
            - Você tem razão, Valdo. Mas parece que você se esqueceu de que eu estou aqui. Se eu lhe salvei, com você fazendo coisas erradas, imagine agora se você fizer coisas acertadas. Além do mais, se você tem amigos eu tenho os meus também, não acha? Façamos cada um a parte que nos toca e tudo sairá bem no final.
            - É, anjo, você tem razão. Mesmo assim, não sei como fazer isso. Você sabe que já pensei nisso várias vezes. Instigou ao anjo.
            -Eu sei, eu sei, Valdo. Mas, já disse e repito, não se preocupe com isso. Afinal de contas, eu sou o seu protetor. Vou-me embora agora. Vá dormir.
            - Espere! Você não pode ir assim! – Protestou Valdo.
            - Por que não? Eu cheguei assim e posso sair assim também.
            - E como faço para vê-lo novamente:
            - Ver-me? A voz do anjo saiu ironicamente diabólica.
            - É força de expressão. Como posso falar de novo com você?
            - É só falar. Eu estou aqui sempre ao seu lado, esqueceu?
            - Mas...
            - Boa noite, Valdo. Boa noite.
            Valdo correu e acendeu a lâmpada. O quarto iluminado mostrava que ele estava sozinho. O ventilador caído ao chão ainda funcionava. Saiu do quarto, foi até a sala, olhou a casa toda e não encontrou nada. Estava sozinho. Aborrecido, intrigado e cansado, Valdo não tinha outra opção. Deitou-se e foi dormir.
            Na manhã seguinte, levantou-se tarde e saiu para tentar saber das notícias. Acreditava que estava salvo, já que nada acontecera até ali. A polícia não foi procurá-lo e tudo estava bem.
            Os vizinhos nem olharam de lado como costumava acontecer. Nenhuma conversa. Tudo normal. Ótimo. Isso favorecia a atitude que deveria ser tomada. A decisão de abandonar de uma vez por todas aquela vida marginal. A partir de hoje, vida nova, Valdo. Vamos fazer diferente para ser diferente. Nada de Valdo. O nome agora é Ivaldolino Neto. Sempre fiz vergonha ao nome de meu avô, agora é hora de recuperar a honra.
            - O anjo vai me ajudar. Estou certo disso. Não vai anjo? Você está aí me ouvindo, não está? Claro que está, sei disso. Senão não seria meu anjo da guarda.
            Enquanto falava consigo mesmo, alegre e sorridente, atravessava as ruas sem estar, na verdade, indo para lugar nenhum.
            - Ei, que tanta gente é aquela ali na frente? Parece um enterro. Estão mesmo levando um caixão. Quem será que morreu? Eu conheço aquelas pessoas que estão fazendo o cortejo.
            Valdo reconheceu alguns amigos e moradores e até alguns familiares seus. Apressou o passo e encostou-se ao caixão ao lado de um homem que cedera o lugar para que pudesse pegar uma das alças.
            - Quem morreu? - Perguntou baixinho ao desconhecido.
            - Foi você, Valdo. Sinto muito, mas não consegui evitar aquela bala no pescoço. Sinto muito.
    


Leia os contos do livro Senhores Cores

A partir de agora vou publicar na íntegra os contos publicados no livro Senhores Cores.
É uma oportunidade que você terá para visitar o mundo literário sem precisar pegar no papel.
Espero que goste da leitura.
Aguarde só mais um pouco.