sábado, 18 de outubro de 2014
À guisa de guizos
À GUISA DE GUIZOS
- Betânia,
feche a janela, por favor.
Apesar
do “por favor” no final da frase, as frases traziam em si o peso de uma ordem
dada com muito rancor. A sala, apesar de fechadas as janelas, se enchia com os
gritos alegres dos foliões, as batidas dos bumbos e as tonitruantes melodias
despejadas pelos trompetes, trombones, saxofones e a tuba da troça que passava
na rua.
-
Diabos. A gente não pode nem assistir à tevê por causa desses maloqueiros. -
Resmungou enquanto aumentava o volume do aparelho com o controle remoto.
-
É carnaval, seu Jonas. - Betânia tentava
contemporizar a raiva de seu idoso patrão.
-
Que carnaval coisa nenhuma. Esse pessoal não tem
é respeito pelo sossego dos outros, isto sim.
Antes que o velho começasse a desfiar o seu
rosário de imprecações contra o carnaval e suas barulhentas manifestações,
Betânia alegou serviços na cozinha e saiu da sala, que já ficava quente com a
falta de circulação de ar por causa das janelas fechadas. Sozinho na sala
quente e barulhenta, Jonas levantou-se e, sem desligar a tevê, dirigiu-se ao
seu quarto que, como ficava nos fundos da casa, era mais silencioso.
Na
cozinha Betânia comentava a ojeriza que o patrão sentia pelo carnaval com
outros criados e alguns moradores de casas vizinhas que passaram para conversar
com a fiel secretária do lar de seu Jonas.
-
Mas este seu Jonas é osso duro de roer, não é
Betânia?
-
Você não conhece da missa um terço Gilmar.
Gilmar era um mulato novo. Tinha uns 23
anos. Talvez 25. Cuidava dos afazeres de banco e comércio do velho Jonas.
Trabalhava há apenas 10 meses, mas já conhecia bem algumas manias e
idiossincrasias do patrão. Ele, que lidava com as contas, já testemunhara
algumas ocasiões nas quais o patrão preferia perder dinheiro a fazer o negócio
do jeito sugerido e que lhe fosse mais vantajoso.
-
Daqui a pouco estará dormindo. Parece um menino
mimado.
Betânia
já conhecia as manhas e manias de Jonas. Já trabalhava para ele há 25 anos e já
o conhecia antes disso, pois sua mãe era cozinheira da família. Ela frequentava
a casa desde menina, acompanhando a mãe e quando já estava mocinha, com seus 13
anos, começou a ajudar oficialmente a casa, recebendo salário. Jonas tinha nela
confiança e ela sabia bem corresponder a ele. Via, ouvia, sabia de tudo e se
calava. Tamanha confiança gerava conversas à boca miúda entre os frequentadores
da casa. Os mais afoitos asseguravam que Betânia era o resultado de um caso que
Jonas mantivera com a cozinheira. Mas como a boca do povo tem mais línguas do
que dentes, Betânia, que sabia dos bochichos, nunca dera atenção àquilo. Às
vezes achava até bom que o povo pensasse assim. Tinham mais respeito. Mas ela
sabia que a história era bem diferente.
Jonas ligara o condicionador de ar de seu
quarto e se deitara em sua cama. Baixara as cortinas das janelas escurecendo o
ambiente e tornando-o mais silencioso do barulho do carnaval. Deitou-se e,
extático, no meio da cama, a olhar o teto, adormeceu.
-
Vamos, Jonas, vamos logo!
-
Calma, esta fantasia é complicada.
-
Deixe-me ajudá-lo... Nossa! Quantos guizos!
-
São 250. Já imaginou o efeito?
-
Que loucura! Mas está uma beleza. Quem desenhou?
-
Eu mesmo. Inspirei-me em alguns trajos da
comédia grega.
-
Rapaz, você vai arrasar. Mas só se for logo.
Senão a gente fica aqui e ninguém vai nos ver. Tânia disse que iria estar com
Sandra nos esperando.
-
Eduardo, meu amigo, este ano, como diz a canção,
não vai ser igual àquele que passou... Com Sandra na jogada, vou fazer a festa.
Vamos embora que já estou pronto.
Os dois rapazes saíram correndo do quarto
onde Jonas se vestia. Ao passar pela sala, Jonas mal se despediu dos pais, e
menos ainda ouviu a recomendação da mãe, que ficou perdida entre as paredes do
corredor. Ela ainda ouviu as palavras de Eduardo ecoando pela casa:
-
Tchau, dona Marta. Feliz carnaval.
Os acordes da banda já iam dobrando a
esquina da praça lá embaixo quando Gilmar entrou na sala e viu a televisão
ligada sem ninguém assistindo. Voltou à cozinha e perguntou a Betânia se podia
desligar o aparelho.
-
Primeiro vá baixando devagar, Gilmar. Depois
desligue. À uma hora dessas, seu Jonas já deve estar no terceiro sono.
-
Olha lá, a Tânia, Jonas.
-
Tânia, Tânia - gritaram juntos os rapazes.
-
Jonas, Eduardo. Oi, que bom ver vocês. Tudo bem?
-
Cadê Sandra?
-
Foi comprar uma bebida. Puxa, Jonas, que
fantasia bárbara!
-
Obrigado. Se ela é legal assim parada, imagina
quando eu começo a pular.
Dizendo
isso, Jonas começou a dançar ao som da música que tocava agitando os seus 250
guizos. Parecia uma bateria andarilha.
-
Olha, lá vem Sandra.
Betânia acabava de preparar o jantar e
agora se ocupava em arrumar a mesa. Mesmo morando sozinho, o costume era de
servir o jantar com certo cerimonial. Mas fazia parte do cerimonial nunca
acordar o velho Jonas se ele estivesse dormindo na hora do almoço ou do jantar.
Quando ele acordasse, mais tarde, não iria incomodar ninguém para servi-lo. Ele
mesmo faria o serviço.
Pelo
que ela conhecia do patrão, deitando e dormindo àquela hora talvez levantasse
só às 11 da noite para jantar. Sem cerimônia, chamou Gaspar e Gilmar para
jantarem.
Gaspar
era o motorista e pai de Gilmar. Já cinquentão, disputava os favores de Betânia
com o próprio filho, mas ela, esperta e decidida, se mantinha calada e séria e
não facilitava para nenhum dos dois. Mas também não cortava. Aceitava de bom
grado as insinuações, porém repreendia, às vezes, alguma saliência,
principalmente de Gaspar, que era casado.
-
Puxa, Sandra está fria comigo.
-
Impressão, Jonas.
-
Impressão nada, Eduardo. Presta atenção. Ela nem
me olhou direito.
-
Mas em compensação, ouviu muito bem. Cada
movimento seu chama mais atenção que a orquestra... Tlim tlim tlim tlim...
-
Eu estou falando sério, Eduardo.
-
Desencana, meu amigo. Vamos molhar a garganta...
Eduardo não deu muita trela para as preocupações de Jonas e saiu
pulando
ao som da música na companhia de Tânia. Sandra brincava com eles, mas Jonas
estava certo no seu depoimento. Ela não parecia estar com o pensamento longe
dali. Ela realmente estava esperando a chegada de alguém. Enquanto podia, Jonas
procurava se aproximar da garota, sem obter muito sucesso.
Para
piorar o quadro, Sandra parecia estar procurando uma pessoa no meio da
multidão, enquanto pulava na folia.
- Será que “seu” Jonas vem jantar hoje,
Betânia?
-
Ele sempre vem, Gilmar. Cedo ou tarde, ele
aparece.
-
E todo carnaval é assim? Nem ele sai daqui, nem
deixa ninguém sair?
-
É, Gilmar! Todo ano, há pelo menos 40 anos.
-
40 anos?
-
É isso mesmo, 40 anos. Algum problema? Deixei de
pagar os dias de trabalho de alguém?
A
entrada do velho Jonas na cozinha onde os criados jantavam, à súbita, deixou
todos perplexos e constrangidos. Levantaram-se e pediram desculpas. O velho
rabugiu. Não tinha mandado ninguém parar de comer, apenas entrara na cozinha.
Mandou que sentassem novamente, puxou uma cadeira para si e juntou-se à mesa.
-
Betânia, por favor, traga-me um copo e aquela
garrafa azul do armário da sala.
Incontinente,
a criada levantou-se e rapidamente satisfez o pedido do patrão.
Jonas
derramou o líquido no copo até a metade e começou a beber lentamente, e como
quem está pensando alto, falou para os criados:
-
Quarenta anos se passaram. Acho que perdi muito
de minha vida por causa desta tristeza enorme que carrego. Sabe que eu estava
dormindo agora e sonhei com o carnaval que vivi 40 anos atrás? Eu estava
orgulhoso de minha fantasia.
-
Era bonita? - Arriscou Betânia para interagir um
pouco.
-
Se era bonita? Acho que sim. Pelo menos era
original. Mas, apesar disso, de nada adiantou eu vesti-la. Quem eu queria que
me visse não me viu. Voltei para casa, guardei a fantasia e nunca mais a vi.
-
Ainda está guardada, senhor?
-
Está, Gaspar. No mesmo local onde eu a coloquei
naquele dia.
-
Aqui, nesta casa, “seu” Jonas? Eu nunca vi, nem
nunca soube disso.
-
É, Betânia. Tem muitas coisas que você não sabe.
Eu sempre fui muito chato mesmo.
Dizendo
isso, sorveu o último gole de bebida do copo.
-
Por favor, me acompanhem neste último trago. É
só para fazer um brinde. Ao fim de minha reclusão.
Colocou
bebida nos copos dos seus criados, que, surpresos e alegres, brindaram e
beberam.
-
O que o senhor quer dizer com o fim de sua
reclusão, “seu” Jonas?
-
A liberdade, Betânia. Para mim e para vocês.
Vamos dar uma volta por aí. Vamos às ruas. Nós quatro. Vou para o meu quarto me
arrumar. Em vinte minutos nós sairemos, aprontem-se.
Puxou
a cadeira e saiu em direção ao quarto. Os três entreolharam-se e ficaram em
silêncio por algum tempo, se questionando o que fazer.
-
Depois conversaremos sobre isso - disse Gaspar.
É melhor fazermos o que ele disse. Vamos logo que já estamos perdendo tempo.
Passados
os vinte minutos determinados, os três foram para a sala esperar o redimido
Jonas. Meia hora, e nada. Quarenta minutos eram nada frente aos quarenta anos,
mas ante a total falta de sinais da saída do velho do quarto, Betânia foi até
lá e bateu na porta do quarto. Não foi respondida. Repetiu o chamado. Ouvindo o
insistente chamado, Gaspar e Gilmar foram até a porta encontrar a criada e
depois de mais uma chamada, sem resposta, resolveram abrir e entrar.
Ao
entrarem no recinto frio e escuro, perceberam o Jonas vestido em sua fantasia
com 250 guizos. Silenciosos e inertes como o corpo do velho deitado na cama. No
rosto, um sorriso poucas vezes visto. Na mão um bilhete quase caindo ao chão.
“Nesta
armadura colorida e sonora, entrei uma vez e saí da vida. Se nela estiver
novamente, toma-a como uma mortalha. Se nela morri, com ela devo ser
enterrado”. Jonas
sexta-feira, 5 de setembro de 2014
De vez em quando
DE VEZ EM QUANDO
Pedi duzentos gramas de presunto. O
balconista retirou do balcão um pacote de presunto light. Inconscientemente,
fiz uma careta e ele percebeu. Perguntou-me se
preferia o outro e se eu queria engordar. Ri e disse que podia ser
daquele mesmo.
Foi quando eu ouvi uma voz dizendo: “Coloque trezentos gramas
para mim, por favor”.
Enquanto o balconista perguntava se era
daquele presunto mesmo e obtinha uma resposta positiva, eu o olhei e senti que
naquele momento parei para pensar na vida. Na minha vida.
Acho que, de vez em quando, nós nos
damos conta de que estamos vivos. Só de vez em quando. No mais das vezes,
estamos com o piloto automático ligado e nem sabemos o que se passa nas nossas
vidas.
Todos
os dias eu ia à padaria e, geralmente, meu marido me acompanhava. Como naquele
dia, ou melhor, naquela noite. Já eram quase oito da noite, e nós voltávamos de
mais um dia de trabalho. Passamos na padaria e nem comprei pão. Lá em casa já
tinha. Quero dizer, ainda tinha.
Precisávamos de leite, queijo e presunto. Duzentos gramas de presunto. Meu
marido ficou na calçada conversando com o dono da padaria, que se preparava
para fechá-la. Peguei um pote de coalhada antes de pedir o presunto e,
literalmente, carregava tudo como se carrega um bebê. Nos braços. Recebi o
presunto e, quando fui sair do balcão onde estava sendo atendida, a coalhada
caiu no chão. Um estrago. Meus pés ficaram cheios de coalhada. O chão lambuzado
com aquela mancha branca e viscosa. Até minha calça ficou suja. Aquele momento
foi cruciante. Fiquei morta de vergonha. Desastrada e suja. Ele me olhou, e eu
percebi o seu interesse em me ajudar. Pedi um pano, um guardanapo ao
balconista. Eu parada com os braços cheios de leite, queijo e duzentos gramas
de presunto. E a coalhada derramada no chão e nos meus pés. Ele estava aflito,
sei que estava. Procurou como me ajudar, mas não conseguiu achar nada para que
pudesse me socorrer. Fiquei morta de vergonha, de verdade. Agora mais forte
ainda, pois ele queria me ajudar e não conseguia. Antes ele não tivesse me
visto. Nem eu a ele. Um dos balconistas me deu alguns guardanapos. Meu marido,
lá fora, nem sabia do ocorrido. Nem me viu. Abaixei-me para limpar os pés.
Abraçava o leite, o queijo e o presunto de uma forma tão intensa e tão
carinhosa que era eu que devia estar ali dentro dos braços: protegida e
escondida. Olhando para o chão e para os meus pés, comecei a limpá-los. Senti a
vergonha sumir e ser substituída por um desejo. Ele ali, em pé, esperando seus
trezentos gramas de presunto, acompanhava o meu ritual com discrição. Ele me
olhava, e eu fiquei desejosa de ter os meus pés lambidos por ele. Devia ter uma
língua gostosa. Sinto que enrubesci. Não de vergonha, desta vez não. Era desejo
mesmo; tesão. Ele carregava nas mãos um pote de coalhada também. Ele gostava.
Será que ele tomaria coalhada servida nos meus pés. Um pote de coalhada
derramado no chão e minha vida sendo posta à prova. Eu estava ficando
louca? Ou estava vivendo? De vez em quando,
isso acontece com todo mundo. Mas para mim era novidade. Estava casada há um
bom tempo e eu amava meu marido. De verdade. Claro que isso não tem nada a ver
com a vida que a gente leva, mas o ineditismo da situação que eu estava vivendo
ali, com a coalhada derramada no meio da padaria, me fez parar para pensar.
Será que ele tinha vontade de lamber meus pés? Nunca pensei em pedir que meu
marido o fizesse. Ele nunca tomou a iniciativa. Nem de vez em quando. E lá
estava eu de cócoras, abraçada com o leite, o queijo e o presunto, limpando meus
pés sujos de coalhada, esperando que ele se aproximasse e me ajudasse. Será que
ele sabia que eu não estava sozinha? Na vida,
claro, porque apesar de meu marido estar ali, a cinco metros de mim na
porta da padaria, eu me sentia a mais solitária e desapegada criatura do mundo.
Minha vida naquele momento, se resumia da um litro de leite, um pacote de
queijo, duzentos gramas de presunto e um pote de coalhada estourado nos pés.
Era o externo. Isso era o que as pessoas viam. Era o que ele via. O que ninguém
via era o que existia dentro de mim. O desejo de ser ajudada. De que ele me
ajudasse e me limpasse, lambesse meus pés. Só os pés? Estava ficando louca
mesmo. Ele está saindo, se dirigindo para o caixa. Eu ainda luto com os
guardanapos, os pacotes nos meus braços, e com meus pés sujos. Peguei outro
pote de coalhada, igual ao que havia caído no chão. Passei pelo caixa e
encontrei-me com meu marido. Não falei do acidente. Ele não perguntou.
Demos
as mãos e começamos a andar em direção à nossa casa. Ele entrou no carro e
passou por nós sem olhar para trás. Não olhei também. Mas pensei, juro que pensei.
Aos poucos, na caminhada, minha vida
voltou ao ritmo normal. O piloto automático estava ligado novamente, mas meus
pés reclamavam por outros caminhos. Estavam sujos de coalhada. Minha vida
estava coalhada, dura e viscosa. Nem era iogurte. Sem corantes, sem
aromatizantes, sem flavorizantes era uma coalhada. Ele se foi e eu fiquei.
Pensava comigo: “Será que ele realmente desejou me ajudar?” A cada passo dado,
os pés se ressentiam da sujeira e
escorregavam dentro da sandália. Será que ele lamberia meus pés? Só os pés?
De vez em quando eu me recordo daquela
noite na padaria.
De vez em quando eu compro coalhada e
derramo nos meus pés.
quarta-feira, 6 de agosto de 2014
O anjo
O ANJO
O
tiro tinha passado tão perto que o calor queimou a pele do pescoço. Era o
chamado “raspão”. Por preciosos milímetros, ele escapara de fazer parte das
estatísticas da polícia.
Ainda
disparou duas vezes com seu revólver contra os homens da lei antes de
desaparecer, correndo, no meio daquelas ruelas e becos escuros.
Ao
chegar em casa, fechou a porta com violência e, tão rapidamente quanto entrou,
jogou-se na cama ofegante. As luzes permaneceram apagadas; as janelas fechadas.
Esticou
o braço e ligou o ventilador. Colocou o revólver debaixo da mesinha que apoiava
o ventilador.
Estava
atento aos ruídos. Sirenes da polícia cortavam a noite. Às vezes, lá longe.
Outras se aproximavam trazendo o medo.
Uma
hora depois, o silêncio da noite já não era mais interrompido pelas ações
policiais. Desta vez, escapara. Mais uma vez.
- Preciso acabar com isso. Talvez não
tenha tanta sorte da próxima vez. - Resmungou para si mesmo.
-
Não deve haver uma próxima vez, Valdo.
-
Quem está aí? - Gritou assustado.
Valdo
levantou-se tão atabalhoadamente por causa do susto que derrubou o ventilador
no chão. Procurou o revólver tentando identificar alguém no escuro do quarto.
-
Não pegue a arma. Não vim aqui para brincar de bang-bang.
-
Quem é você? O que quer aqui? - Em pé, tentava acender a lâmpada.
-
Não adianta acender a luz, Valdo. Acalme-se e ouça.
A
voz continuava grave e profunda, porém calma e suave.
-
Você não conseguirá me ver - continuou a voz no escuro - você somente me
ouvirá. Eu sou seu anjo da guarda.
-
Quer me fazer de idiota? Apareça antes que eu me irrite mais ainda?
-
E você vai fazer o que se ficar mais irritado? Vais arrancar as penas das
minhas asas. Ha, ha, ha.
- Que brincadeira idiota é essa? Onde está você?
Quem é você? Como entrou aqui?
-
Já disse. Sou seu anjo da guarda. Eu estou aqui. Sempre estou ao seu lado.
Entrei com você.
-
Muito bem, meu anjo da guarda, diga então o que quer de mim e depois, por
favor, dê o fora. Preciso descansar. Tive um dia cheio.
-
Eu sei disso, por isso quero conversar contigo. Mas, por favor, deixe o
sarcasmo de lado. Ainda há pouco, você disse que devia largar essa vida. Vim
para conversar sobre isso. É preciso que você abandone de vez essa vida. - A
voz do anjo soou melíflua, como deve ser a voz dos anjos.
-
Vá para o inferno com essas bobagens - exasperou-se Valdo.
-
Para o inferno vai você desse jeito. A bala de hoje sentiu o cheiro do seu
pescoço. Na próxima vez, entra no meio de sua testa. Aí sou eu quem vai rir e
descansar um pouco. Não aguento mais ficar tirando você desses apuros. - O anjo
mudou o tom de voz e falou com raiva.
-
Como você sabe da bala de hoje? Valdo assustou-se com a informação do anjo e
baixou o tom da voz, assustado.
-
Como posso saber? Eu estava lá, seu idiota, protegendo sua carcaça inútil e
me ferrando todo. Eu não sou seu anjo da
guarda? Se eu tivesse corpo feito de matéria, estaria parecendo uma peneira.
Adivinha, graças a quem? - A irritação continuava na voz do anjo.
Valdo,
assustado com a conversa, perguntou timidamente se podia acender a luz. Mesmo
que o seu interlocutor não pudesse ser visto, ele acreditava que a iluminação
traria mais conforto àquela situação.
-
Quer que todos saibam que você está em casa? Acho uma insensatez.
-
Bem, é que...
-
Quer me ver, não é? Já disse que não podes me ver. Quando muito, poderá ver
umas sombras projetadas na parede, mas não creio que isso seja interessante no
momento. O escuro e o silêncio são os nossos melhores companheiros. Cale-se e
ouça o que tenho a dizer.
Valdo
ouviu a preleção do anjo. Este respondia às questões do bandido, que cada vez
mais se convencia de ter que deixar aquela vida.
-
E os meus companheiros? Eles não vão aceitar esta saída. Vão me cobrar e, quem
sabe, até me pressionar, daquele jeito, para que eu não saia do crime. Eles têm
medo que eu os denuncie.
-
Você tem razão, Valdo. Mas parece que você se esqueceu de que eu estou aqui. Se
eu lhe salvei, com você fazendo coisas erradas, imagine agora se você fizer
coisas acertadas. Além do mais, se você tem amigos eu tenho os meus também, não
acha? Façamos cada um a parte que nos toca e tudo sairá bem no final.
- É, anjo, você tem razão.
Mesmo assim, não sei como fazer isso. Você sabe que já pensei nisso várias
vezes. Instigou ao anjo.
-Eu
sei, eu sei, Valdo. Mas, já disse e repito, não se preocupe com isso. Afinal de
contas, eu sou o seu protetor. Vou-me embora agora. Vá dormir.
-
Espere! Você não pode ir assim! – Protestou Valdo.
-
Por que não? Eu cheguei assim e posso sair assim também.
-
E como faço para vê-lo novamente:
-
Ver-me? A voz do anjo saiu ironicamente diabólica.
-
É força de expressão. Como posso falar de novo com você?
-
É só falar. Eu estou aqui sempre ao seu lado, esqueceu?
-
Mas...
-
Boa noite, Valdo. Boa noite.
Valdo
correu e acendeu a lâmpada. O quarto iluminado mostrava que ele estava sozinho.
O ventilador caído ao chão ainda funcionava. Saiu do quarto, foi até a sala,
olhou a casa toda e não encontrou nada. Estava sozinho. Aborrecido, intrigado e
cansado, Valdo não tinha outra opção. Deitou-se e foi dormir.
Na
manhã seguinte, levantou-se tarde e saiu para tentar saber das notícias.
Acreditava que estava salvo, já que nada acontecera até ali. A polícia não foi
procurá-lo e tudo estava bem.
Os
vizinhos nem olharam de lado como costumava acontecer. Nenhuma conversa. Tudo
normal. Ótimo. Isso favorecia a atitude que deveria ser tomada. A decisão de
abandonar de uma vez por todas aquela vida marginal. A partir de hoje, vida
nova, Valdo. Vamos fazer diferente para ser diferente. Nada de Valdo. O nome
agora é Ivaldolino Neto. Sempre fiz vergonha ao nome de meu avô, agora é hora
de recuperar a honra.
-
O anjo vai me ajudar. Estou certo disso. Não vai anjo? Você está aí me ouvindo,
não está? Claro que está, sei disso. Senão não seria meu anjo da guarda.
Enquanto
falava consigo mesmo, alegre e sorridente, atravessava as ruas sem estar, na
verdade, indo para lugar nenhum.
-
Ei, que tanta gente é aquela ali na frente? Parece um enterro. Estão mesmo
levando um caixão. Quem será que morreu? Eu conheço aquelas pessoas que estão
fazendo o cortejo.
Valdo
reconheceu alguns amigos e moradores e até alguns familiares seus. Apressou o
passo e encostou-se ao caixão ao lado de um homem que cedera o lugar para que
pudesse pegar uma das alças.
-
Quem morreu? - Perguntou baixinho ao desconhecido.
-
Foi você, Valdo. Sinto muito, mas não consegui evitar aquela bala no pescoço.
Sinto muito.
Leia os contos do livro Senhores Cores
A partir de agora vou publicar na íntegra os contos publicados no livro Senhores Cores.
É uma oportunidade que você terá para visitar o mundo literário sem precisar pegar no papel.
Espero que goste da leitura.
Aguarde só mais um pouco.
É uma oportunidade que você terá para visitar o mundo literário sem precisar pegar no papel.
Espero que goste da leitura.
Aguarde só mais um pouco.
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